Influência

História do Pagode Baiano

 
 
Autor: Pena, Anderson dos Anjos Pereira.
Cultura de Consumo e Relações de Gênero no Pagode Baiano. / Anderson dos Anjos Pereira Pena - 2010.

A história dos batuques, lundus, umbigadas, samba tradicional, samba de roda, samba de fundo de quintal, pagode romântico e outros gêneros, estilos musicais e danças tem ligação direta com a história do pagode baiano. A evolução e miscigenação desses ritmos, juntamente com as mudanças no processo de urbanização das cidades, propiciaram ao pagode abordado aqui seu surgimento e progresso.
 
Para compreender todo esse processo histórico-cultural, necessitamos de um mergulho na história da música brasileira, no que tange à história das populações negras no Brasil e aos sons produzidos e seguidos, popularmente, nas senzalas ou nas ruas de duas importantes cidades brasileiras: Rio de Janeiro e, em caráter especial, Salvador, por se tratar da cidade na qual desenvolvemos a pesquisa. A música produzida muitas vezes desafiava atos governamentais e religiosos que iam de encontro às festas e demais reuniões musicais de negros e mestiços. Quando não desafiava os poderes constituídos, a música servia como refrigério ante a agressiva escravidão e marginalização negra.
Enfim, esses sons evoluíram e claro passaram a pertencer de fato à população brasileira como um todo. Percorreram outras regiões do país, mantiveram a sua força nos locais de origem e deram base para o surgimento de outros novos estilos, danças, ritmos, novas maneiras de protestar ou de apenas se divertir.
Ao ter fim a escravidão, novas formas de trabalho tomaram conta do país, embora a perspectiva de exploração se promulgasse. A música, que serviu como um meio de protesto ou de alegria ante a sofrida escravidão, no novo contexto histórico pós-abolição. E diante das novas formas de trabalho assalariado, continuara a ter mais força nas/para as camadas populares, nos processos de identificação coletiva tanto para reivindicar direitos, quanto para divertir a população.
As cidades do Rio de Janeiro e Salvador intensificaram suas produções culturais da música. Embora, muitas vezes, enveredem por caminhos diferentes, características impregnam os dois lados. Um exemplo está no pagode baiano e no funk carioca, pois temos estilos musicais e danças diferentes, mas a sensualidade atribuída às coreografias, especialmente focadas no corpo feminino, e o perfil do público que consome as músicas une caracteristicamente os dois estilos musicais.
As razões do surgimento do pagode baiano, as coincidências com a música produzida no Rio de Janeiro, o público que o tem como preferência musical, a trajetória histórica desse estilo musical, as danças, as letras, os músicos de grande destaque, as polêmicas, o consumo e suas perspectivas, exprimem a razão de ser desse capítulo. Esperamos assim, entender a história e as perspectivas do pagode baiano para, posteriormente, entender as questões de gênero (enquanto identidade social dos sexos) ligadas a esta espécie musical.
É o samba enquanto gênero musical que proporciona a origem do pagode baiano. Entender esse gênero musical, suas construções históricas, culturais e sociais, amplia nosso grau de visibilidade e dos passos mutáveis que chegam ao pagode baiano do tempo presente. Entendemos gênero musical, segundo Carvalho como
 
[...] um conjunto de palavras ou tropos literários fixos que combinam com algum padrão rítmico particular e com algum tipo particular de harmonia e de movimento melódico porque aquelas palavras ou tropos evocam uma determinada paisagem social, uma paisagem histórica, uma paisagem geográfica, uma paisagem divina, ou mesmo uma paisagem mental. Tudo isso é um gênero musical. Uma vez que se tenha o tudo articulado como um gênero, então tem-se muitas experiências de fusão que formam parcialmente gêneros e a superposição entre dois ou mais deles, expandindo geometricamente essa riqueza narrativa. Essa riqueza, por sua vez, pode evocar as estruturas dos gêneros que foram postos em contato numa única peça musical. (CARVALHO, apud LIMA, 2003, p.89)
 
Assim, o samba enquanto gênero musical traz esse conjunto rítmicolinguístico que representa as diversas paisagens históricas, sociais, culturais, religiosas e psicológicas das populações que vivem nos morros, nas favelas ou em bairros populares. Tais paisagens configuram a identidade de um povo, descrevem os desafios sociais e causam a sensação de pertencimento, união e solidariedade para enfrentamento dos desafios cotidianos. Por isso, o samba tem singular representação no imaginário das populações que com ele se identificam. Em toda sua história, mesmo antes de se configurar definidamente como samba, o estilo musical teve perfil de aglutinação de pessoas na prática de fortalecimento da pertença, em festividades negras realizadas nas senzalas ou nas ruas.
A história do samba remonta a partes recorrentes da história dos sons produzidos pelas populações negras no Brasil. Tinhorão (2008) tem apontado para as origens desses sons dos negros, inicialmente apresentando os calundus que, segundo o Novo Dicionário Aurélio (2010) trata-se de um substantivo masculino que denota um “espírito dum antepassado remoto, suposto ente sobrenatural que dirige o destino da pessoa em quem se incorpora”. Nos estudos de Tinhorão, os calundus poderiam ser, em um primeiro momento, festas religiosas de matriz africana bem como, num segundo momento, os batuques produzidos nesses rituais religiosos, e depois, a incorporação de entidades espirituais que cuidavam das vidas das pessoas. Tais incorporações aconteciam em festas e rituais religiosos ao som dos tambores, onde os incorporados faziam presságios para filhos de santo e curiosos que participavam dessas festividades.
A partir da administração de Maurício de Nassau em 1644 “que iam ficar registradas as informações mais vivas e mais diretamente ligadas à vida dos negros na sociedade colonial brasileira” (TINHORÃO, 2008, p. 33). O referido autor destaca as imagens de escravos capturados durante esse período, dançando nas telas de Frans Post e em gravuras de Gaspar Barlaeus, bem como a descrição de uma cena de dança coletiva por Zacharias Wagener, no Livro dos animais do Brasil. Embora não houvesse atribuição direta por parte dos pintores, gravuristas e escritores, a descrição nas primeiras pinturas, gravuras e livros que tematizam as danças dos negros as aproximam da noção recente que temos dos rituais e festas religiosas dos terreiros de candomblé. Como aponta Sodré,
 
[...] nos quilombos, nos engenhos, nas plantações, nas cidades, havia samba onde estava o negro, como inequívoca demonstração de resistência ao imperativo social (escravagista) de redução do corpo negro a uma máquina produtiva e como uma afirmação de continuidade do universo cultural africano. (SODRÉ, 1998, p.12)
 
Como som de negro, escravo e, portanto, marginal, as formas da música e da dança nascidas primordialmente na religiosidade africana e diaspórica, ao mesmo tempo em que afirmavam a identidade afro-brasileira incomodavam a elite colonial branca. O preconceito da elite colonial sobre essas danças é evidente nos relatos históricos das precisas fontes citadas por Tinhorão. Essa elite rotulava as festividades ou rituais onde a dança calundu era praticada, de bailes bárbaros ou mesmo demonizavam tais danças. Tal preconceito também é evidente nas descrições do cronista Gregório de Matos ou de autoridades moralistas como Nuno Marques Pereira.
O calundu é, portanto, a dança ou ritmo musical que está na linhagem da construção do gênero samba, pois envolvia aí as descendências da população que se identifica atualmente com o gênero e suas paisagens históricas, culturais, sociais, dentre outras. O termo passou por uma variação se tornando também conhecido como lundu. Sobre isso, Tinhorão (2008) alerta que esse lundu, enquanto variação do calundu, nada tem a ver com uma dança de roda a base de umbigadas e castanholar de dedos com o nome de lundu. Apesar da sinonímia, o lundu (variação do calundu) ao qual o autor se refere é uma derivação brasileira de danças e rituais religiosos de matriz africana, parte dos batuques, folguedos e festas religiosas, mas toma formatos próprios a partir da participação da população mestiça e brancobrasileira em tais batuques. Assim, encontramos no calundu a primeira referência histórico-identitária com o samba e a população que tem como referência esse gênero musical.
Os lundus surgiram nas senzalas, mas ganharam as ruas e envolveram a população brasileira da colônia em maior amplitude, inicialmente na perspectiva religiosa, mas posteriormente impondo-se como ritmo e estilo de dança e música, sendo conhecido também como batuque ou batucada. Assim, ao ganhar as ruas, os lundus propiciam a origem de outros estilos e intercomunica-se com ritmos e danças já existentes.
É interessante notar que as músicas que por muito tempo foram sinônimo de vulgaridade e estigma pela sociedade colonial e, mais a frente, republicana racista, ressurgiam, apropriadas pela mesma elite que anteriormente as criticava e demonizava, como algo sofisticado e sublime. Dava-se apenas uma nova roupagem nas músicas e danças, mas mantinha-se a consistência das origens.
O lundu não é samba, nem pagode, mas principia nas raízes dessas músicas e práticas culturais da diáspora africana, que dá origem a músicas atuais como o rap, soul, funk, reggae, samba e pagode. Inicialmente vulgarizado pela elite, o lundu volta à cena brasileira apropriado pela própria elite no teatro ou então nas danças da antiga polca, agora transformada em maxixe – uma dança de salão -, que flui ao som do ritmo do dançado e cantado lundu (TINHORÃO, 2008).
As umbigadas também foram essenciais para as origens do samba. Tratava-se de uma dança de roda popular, muito conhecida em todo o Brasil, especialmente na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, na qual as pessoas, ao dançar, batiam entre si barrigas e pernas. Tinham como local comum de encontro as praças ou casas que sempre tinham ligação religiosa com rituais e festas de matriz africana.
Outras contribuições de suporte significativo para a origem do samba foram, ainda segundo Tinhorão (2005), as serenatas nos séculos XVIII e XIX e mais tarde os seresteiros do século XX. Tais cantores de rua colaboraram para a agregação, em locais estratégicos dos centros urbanos, tanto na Bahia, quanto no Rio de Janeiro, de pessoas que ouviam as músicas sempre acompanhadas do som do violão e de instrumentos percussivos. Mas é a partir da década de 1950 que os sons diaspóricos ganham força novamente, com os pagodes no centro de Salvador. Esse pagode nada tem a ver com a espécie do samba, denominado pagode baiano, que abordamos aqui. Pagode era o nome dado as reuniões nos bares e casas noturnas do centro da cidade para ouvir o samba tradicional, que ocupava agora o local que antes pertencia à seresta e, num passado mais distante, às serenatas.
Foram os Estados da Bahia e Rio de Janeiro que vicejaram o pioneirismo dessa produção da tradição diaspórica. Na Bahia tivemos um começo mais efervescente com o samba de roda, muito conhecido atualmente como de recôncavo, mas o Rio de Janeiro teve uma grande contribuição no gênero em seu formato tradicional.
Apesar das tentativas governamentais racistas de faxina sócio-cultural, que buscavam eliminar a presença crioula e mestiça na música popular brasileira nos últimos anos do século XIX e primeiros anos do século XX, a história aponta que o recém nascido samba buscou estratégias inteligentes de sobrevivência. Assim Sodré (2003) mostra a importância das “casas de santo” no abrigo escamoteado das perseguidas festas de samba no Rio de Janeiro. Eram nos terreiros, representados nas importantes figuras dos/as zeladores/as de santo, yalorixás, babalorixás e babalaôs, conhecidos/as na época como “tios” e “tias”, que a memória do samba foi preservada e fomentada. Sodré nos dá indicação de como esses encontros festivos ocorriam no final do século XIX e início do século XX, sempre em casas, geralmente de seis cômodos, cujas salas recepcionavam convidados para dançar as modinhas e as polcas. Em uma segunda sala, as pessoas que tinham o “gingado” e “remelexo” dançavam os primeiros ritmos de samba e no quintal, as batucadas religiosas em louvor as divindades africanas. Assim, “o samba já não era, portanto, mera expressão musical de um grupo social marginalizado, mas um instrumento efetivo de luta para a afirmação da etnia negra no quadro da visa urbana brasileira” (SODRÉ, 2003, p. 16).
Como pioneiros dessa origem do samba, entre as décadas de 1910 e 1920, destacaram-se e imortalizaram-se músicos como Cartola e Assis Valente, que, segundo Sodré (2003), compuseram o primeiro samba brasileiro: Pelo telefone, cantado pela primeira vez em uma dessas “casas de santo” lideradas por uma influente babalaô do Rio de Janeiro, a conhecida Tia Ciata (ou Aciata), casada com o médico João Batista da Silva, que se tornaria dirigente do gabinete do chefe de polícia no governo Wenceslau Brás. Há divergências sobre a autoria do samba “Pelo telefone”. O baiano Donga também é citado por outros autores como responsável por essa composição (LEME, 2003).
O século XX é diferencial para o nosso estudo, pois é nele que realmente nasce e avança o samba enquanto gênero musical. Reconhecemos as contribuições das práticas diaspóricas e as hibridizações musicais que subsidiaram o surgimento do samba e reafirmamos criticamente a prática elitista de rejeitar, momentaneamente, a produção dos marginalizados para depois possuí-la e consumi-la com voracidade, seja para diversão elitizada ou para exploração através da propagação de consumo para lucrar com essas músicas. Nesta afirmação encontramos um ponto de mudança nas perspectivas de consumo do samba.
Podemos entender a história social do samba e sua fecunda vinculação com as classes oprimidas em três momentos históricos específicos. Primeiramente como um eixo comum nas resistências das populações negras, servindo para reafirmar a cultura, até chegar a ser, enquanto música, eixo articulador da identidade popular nacional. Por último, após o advento da indústria fonográfica, toma novos contornos com espécies e novas perspectivas que desestabilizam os papéis atribuídos a esse gênero musical nos dois primeiros momentos.
Já analisamos aqui o primeiro momento do samba, as intercomunicações históricas com outros gêneros e estilos que propiciaram o seu surgimento, bem como as relações contra-hegemônicas que o samba tem com esse canto afirmativo dos negros e miscigenados. Agora, tomando essa referência do final do século XIX e início do século XX, analisaremos o samba como eixo articulador da identidade nacional, para então, em seguida compreendermos a industrialização do gênero e suas mais recentes espécies pela indústria da música e as significativas mudanças que implicam no conceito de cultura popular.
O pós-abolição teve o samba com um dos principais emblemas da consolidação da identidade negra diaspórica e articulação desta com a nacional. Diante da hostilização inicial da elite para com essa camada da população recém liberta, o samba foi essencial para afirmação da identidade afro-brasileira. Perante a resistência cultural popular, que se manifestava contra as perseguições autoritárias, e a ineficiência governamental que utilizou o aparelho policial para reprimir as festas embaladas pelo samba e congêneres, as autoridades e a elite intelectual branca do Brasil passaram a reconstruir seus objetivos visando acalmar os ânimos sociais e, para tanto, utilizou o samba, agora com uma concepção ideológica, tentando impô-lo como aglutinador da identidade nacional.
A década de 1930 foi diferencial para o fortalecimento do conceito de identidade nacional, quando, segundo Yudice (2008), Gilberto Freire trouxe à tona a noção da democracia racial. A partir daí, pautados na busca de símbolos que significassem a identidade nacional dessa nação racialmente democrática, as lideranças governamentais e intelectuais do país pararam para (res)siginificar os elementos constitutivos da civilização. O samba, nesse percurso, passou a representar a música dileta das camadas populares, da gente sofrida, guerreira, batalhadora, que vivia a margem da sociedade, nos centros urbanos, morando em favelas, invasões, ou em áreas suburbanas, convivendo com a pobreza, mas que tinha no samba essa referência e significação identitária que os ligavam ao restante da população brasileira, perfazendo, assim, a identidade nacional.
O samba era para a população pobre do país um momento de sociabilidade e descarrego sentimental da “vida dura” cotidiana, mas também implica um processo de alienação, pois, nessa busca de constituição de uma identidade coletiva nacional, a submissão e manutenção dessa realidade aparecem como uma coisa natural, sem preocupações com a cidadania ou com a emancipação das populações marginalizadas. Yudice (2008) reafirma essa ideia de povo pobre, mas rico em espírito. A partir de uma pesquisa com sambistas da atualidade, o referido autor apresenta a concepção comodista ainda influenciada pela elite cultural, que tenta institucionalizar os conceitos de identidade nacional e cultura popular. Ainda salienta que essa concepção comodista, mencionada acima, sobre a importância do samba pode causar problemas:
 
O que realmente acontece é que, desde a década de 1930, as ditas práticas vêm sendo mobilizadas pela mídia, pelos negócios, (em especial, o turismo), pela política (inclusive a manipulação do carnaval), e outros fatores de mediação para reprodução simbólica de um Brasil “cordial”, que resulta no abocanhamento de benefícios materiais por parte de elite. (YUDICE, 2008, p. 138)
 
A crítica não se dirige ao gênero musical samba, mas aos usos do conceito de cultura popular que tende a promover o efeito alienante. O samba em si não tem como proposta atender as elites. Ele por si só não tem finalidades específicas, elas são constituídas por aqueles que o fazem, que o consomem ou que o vendem, mesmo sem plena consciência dessas finalidades por parte desses atores sociais. Vimos, anteriormente, o papel aglutinador que o samba, mesmo em suas origens, teve na projeção da cultura diaspórica que buscava afirmar-se e, de fato, conseguiu, através das danças, letras e ritmos, interligados ao samba, como suporte diferencial para tal afirmação identitária. Mas, neste momento histórico do projeto de nação que visava a conceitualização de uma identidade nacional unificada, o que um dia foi elemento de emancipação e afirmação – mais uma vez reiteramos a forma limitada desse processo – agora pode ser utilizado para massificar, alienar e manter o status quo.
A evolução da presença do samba nos processos constitutivos e evolutivos da identidade diaspórica na identidade nacional, nos leva ao terceiro e presente momento da experiência do samba no Brasil, que está presente em sua industrialização. É na segunda metade do século que o samba passa a ser utilizado por meios de produção e veiculação para consumo de bens simbólicos, prática que pode formar parte do fenômeno estudado e cunhado por Adorno e Horkheimer (1986) com o termo de “indústria cultural”. Esta indústria tem a função de atender ao capitalismo globalizado contemporâneo e tornar a cultura algo cada vez mais comercializável e, portanto, economicamente produtivo. Para isto, a produção intelectual da cultura e sua veiculação pelo aparelho midiático necessitam de força de trabalho artístico com grande desempenho produtivo, com o intuito de gerar cada vez mais novos produtos culturais que serão reproduzidos e vendidos em larga escala.
A indústria da cultura de massa foi essencial na venda do samba e congêneres, tirando-os dos bairros marginalizados e levando-o para todo o território nacional ou mesmo internacional. A partir das práticas dessa indústria é que espécies do samba foram criadas e consumidas. O “samba de raiz” do Rio de Janeiro e o “samba do recôncavo” da Bahia deram espaço para outros sambas mais contextualizados com a realidade dos morros e da periferia - que o consumiria – como o pagode, que caracterizamos aqui como espécie ou estilo musical imbricado no samba, que se espalhara pelo Brasil com notável velocidade, como é descrito na própria letra de um famoso samba, “Os tempos idos”, de autoria de Cartola e Carlos Cachaça:
 
Os tempos idos/
Nunca esquecidos/
Trazem saudades ao recordar/
É com tristeza que eu relembro/
Coisas remotas que não vêm mais/
Uma escola na Praça Onze/
Testemunha ocular/
E junto dela balança/
Onde os malandros iam sambar/
Depois, aos poucos, o nosso samba/
Sem sentirmos se aprimorou/
Pelos salões da sociedade/
Sem cerimônia ele entrou/
Já não pertence mais à Praça/
Já não é mais o samba de terreiro/
Vitorioso ele partiu para o estrangeiro/
E muito bem representado/
Por inspiração de geniais artistas/
O nosso samba de, humilde samba/
Foi de conquistas em conquistas/
Conseguiu penetrar o Municipal/
Depois de atravessar todo o universo/
Com a mesma roupagem que saiu daqui/
Exibiu-se para a duquesa de Kent no Itamaraty.
 
Essa letra sintetiza um pouco da história do samba que até aqui retratamos e direciona para as perspectivas da indústria cultural que abordaremos a seguir. A partir dessa letra passamos ao novo momento histórico do samba, diferente dos descritos inicialmente por Sódre (2003), Tinhorão (2008), onde percebemos que o samba “Já não pertence mais à Praça / Já não é mais o samba de terreiro”. Agora vamos entender como o samba entrou no circuito nacional e internacional. Esse momento é crucial para a compreensão de como surge o pagode baiano e congêneres do samba.
Nos sambas mais consumidos que descrevem as realidades sociais das favelas, nas décadas de 60 a 80, apareceram sambistas como, por exemplo, Moreira da Silva, Dicró e Bezerra da Silva. Conforme caracterizações feitas por Viana (1999) e Augusto (1996), a proposta desse samba era fugir um pouco do melodrama da vida cotidiana dos excluídos e da romantização dessa vida, a fim de descrever o morador dos bairros marginalizados como alguém esperto, malandro, com gingado diferente, que sabe se virar no samba e na vida. O sujeito viril, que “dobra” qualquer “mané" (o antônimo do malandro) e “pega” qualquer mulher com sua “lábia” e sensibilidade de conquistador, que, mesmo sem ou com pouco dinheiro no bolso, sobrevive com maestria, independente de estar empregado ou não. As músicas abordam a temática das drogas e deflagram a figura do “cacoete”: o “cara” que é um “dedo duro”, um “mané”, um otário que entrega os irmãos (malandros) para a polícia. Situações cômicas e de relações com parentes e familiares também são descritas nas letras desse samba; ironias com a sogra; comemoração após “pegar” a mulher do “mané”, são comuns nas letras dessas músicas.
É interessante notar a influência do sambista Bezerra da Silva, tanto ao retratar a realidade sócio-cultural, quanto em delinear estereótipos que influenciaram os comportamentos dos moradores dos morros e favelas, inicialmente do Rio de Janeiro, mas que se espalhou pelos bairros marginalizados e periferias do país nas décadas de influência massificante dessas músicas.
Ainda de acordo com Viana (1999), outras vozes expressaram o romantismo no samba como parte do trabalho da famosa intérprete Alcione; outras buscaram ressignificar os remanescentes batuques, trazendo os cantos religiosos de matriz africana hibridizados com as evoluções musicais dos sambas das décadas de 1950 a 1980. Alguns mantiveram características do samba de roda, e resquícios das umbigadas nos partidos altos, inicialmente sem grupos muito conhecidos pela indústria da cultura da época. Sambistas e partideiros de destaque como Martinho da Vila, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, entre outros, navegam entre a tradição e a inovação, principalmente pela prática que intercomunica o samba com outros gêneros da música brasileira, sendo que alguns deles também se apresentam simultaneamente como cantores de outros gêneros musicais (música romântica, bossa nova, pop, MPB e outros).
Lopes (1992) enfatiza que o samba que retrata a realidade dos morros geralmente é incorporado pelos grupos de partido alto do samba – também conhecidos como grupos de fundo de quintal - e tem desdobramentos até os dias atuais. Esses grupos, que antes não tinham características e formatos para o consumo de sua música, com a indústria cultural passaram a ter. Entre os grupos destacam-se no Brasil “Revelação”, “Fundo de Quintal”, dentre outros. São conhecidos também cantores de partido alto que fizeram carreira sólo, tais como Jorge Aragão, Arlindo Cruz, e muitos outros.
Na década de 1980 explode no Brasil a espécie de samba que, em muitos casos na mídia nacional, compete com o próprio gênero de origem: o pagode. Como vimos, o significado que já possuiu o termo pagode dava sentido às reuniões onde o samba era tocado. Agora ele aparece de fato como espécie do samba, a partir da utilização de novos instrumentos percussivos, de corda e até de música eletrônica.
Inicialmente, o pagode de repercussão nacional foi o pagode romântico. De acordo com Moura (1996), essa espécie do samba até mesmo deu origem a bandas fora do tradicional eixo sambista “Rio-Bahia”. O pagode romântico emocionou muitas pessoas e grupos do país e entrou para o cenário da memória coletiva popular com profundidade. Tornaram-se inesquecíveis as contribuições da banda mineira “Só pra contrariar”, representada por seu ex-vocalista Alexandre Pires, que atualmente segue carreira sólo. Outra banda que angariou muitos fãs foi “Raça Negra”, que tinha, e ainda tem um repertório voltado para o tratamento de questões românticas, falando sobre o amor nos relacionamentos, as rejeições, os rompimentos, as voltas, etc. Katinguelê, Karametade, Soweto, Molejo, Negritude Júnior, e uma lista imensa de outros grupos, investiram pesadamente nessa espécie do samba e tiveram cifras financeiras bem altas, com suas gravadoras e empresários, através da vendas de discos e CDs. Muitos se desligaram das bandas e aventuraram carreira sólo. Como em uma loteria, alguns obtiveram sucesso e outros não, sem explicações lógicas que justifiquem os casos.
São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e outros Estados brasileiros apostavam no pagode romântico. O pagode que a Bahia constituiu com solidez, surge em meio a essas mudanças, que redefinem o conceito de indústria cultural e cultura de massa, gerando um novo ritmo produtivo e de consumo, descentrando produções simbólicas atribuídas a certos grupos sociais e desestabilizando o conceito de cultura de massa.
Como percebemos na descrição das origens do samba, a mudança temporal influenciou de forma preponderante para a configuração da identidade nacional a partir da música, nos tempos atuais. Com o surgimento dos mecanismos pósmodernos que desconstruíram narrativas da modernidade sobre identidade e práticas de consumo, a música e o conceito de popular foram terminantemente abalados, deslocados e/ou descentrados.

Enfim, percebemos na constituição histórica do samba as características evolutivas que dão condições para o surgimento e existência do pagode baiano. Atualmente essa experiência cultural está afetada pelo processo de globalização capitalista que traz a cultura de consumo descartável, fato que incide no surgimento de bandas e músicas de pagode cada vez mais efêmeras, cujas letras nos levam a refletir sobre o espelho de uma dominação histórica masculina, sempre presente na história da humanidade e que, apesar dos grandes avanços dos movimentos feministas, atualmente é estimulada através da cultura de consumo e da cultura musical.

Autor: Pena, Anderson dos Anjos Pereira.
Cultura de Consumo e Relações de Gênero no Pagode Baiano. / Anderson dos Anjos Pereira Pena - 2010.